Profa. Dra. Alessandra Gotuzo Seabra Capovilla
Programa de Pós-Graduação Strico Sensu em Psicologia, Universidade São Francisco
Pesquisadora pelo CNPq do Laboratório de
Neuropsicolingüística Cognitiva Experimental do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo
A partir do estudo de crianças em aquisição de leitura
e escrita e de pacientes neurológicos com distúrbios em tal aquisição, diversos
pesquisadores, como Frith (1990) e Morton (1989), descreveram as três estágios
pelos quais a criança passa no processo de domínio da linguagem escrita:
logográfico, alfabético e ortográfico.
No estágio logográfico, a criança trata a palavra
escrita como se fosse uma representação pictoideográfica e visual do referente,
não atentando à sua característica alfabética, ou seja, ao código de
correspondências entre letras e combinações de letras (grafemas) e seus
respectivos sons da fala (fonemas). Neste estágio, a leitura consiste no
reconhecimento visual global de algumas palavras comuns que a criança encontra
com grande freqüência, como seu próprio nome e os nomes de comidas, bebidas e
lugares impressos em rótulos e cartazes. A escrita também se resume a uma produção
visual global, sendo que a escolha e a ordenação das letras ainda não estão sob
controle dos sons da fala. A manutenção de tal estratégia de leitura
logográfica exigiria muito da memória visual e acabaria levando a uma série
crescente de erros grosseiros, como trocas de palavras (paralexias) visualmente
semelhantes. Frente ao crescente contato com material escrito e às instruções
sobre a linguagem escrita, a criança começa a ingressar no segundo estágio, o
alfabético.
No estágio
alfabético, as relações entre o texto e a fala se fortalecem e, com o
desenvolvimento da rota fonológica. Neste estágio, a criança aprende o
princípio da decodificação na leitura (isto é, a converter as letras do texto
escrito em seus sons correspondentes) e o da codificação na escrita (converter
os sons da fala ouvidos ou apenas evocados em seus grafemas correspondentes).
De início, tal processo é muito lento e a criança tende a cometer erros na
leitura e escrita de palavras em que há irregularidade nas relações entre
letras e sons (e.g., táxi). No
entanto, à medida que a criança tem maior contato com a leitura e a escrita,
ela vai se tornando cada vez mais rápida e fluente em tais habilidades, e vai
cometendo cada vez menos erros envolvendo as palavras irregulares, desde que as
encontre com uma certa freqüência. Com a prática, a criança não apenas deixa de
hesitar, como também passa a processar agrupamentos de letras cada vez maiores,
em vez das letras individuais, chegando a processar palavras inteiras se estas
forem muito comuns e lendo-as de memória. Neste ponto, a criança está deixando
o segundo estágio e entrando no terceiro, o ortográfico.
No estágio
ortográfico, a criança aprende que há palavras que envolvem irregularidade
nas relações entre os grafemas e os fonemas. Ela aprende que é preciso
memorizar essas palavras para que possa fazer uma boa pronúncia na leitura e
uma boa produção ortográfica na escrita. Tendo já passado pelo estágio
alfabético, em que aprendeu as regras de correspondência entre grafemas e
fonemas, agora, no estágio ortográfico, a criança pode concentrar-se na memorização
das exceções às regras (isto é, na ortografia das palavras grafofonemicamente
irregulares), na análise morfológica das palavras que lhe permite apreender seu
significado, e no processamento cada vez mais avançado da sintaxe do texto.
Neste ponto, seu sistema de leitura pode ser considerado completo e maduro,
conseguindo ler as palavras familiares com cada vez maior rapidez e fluência,
por meio do reconhecimento visual direto (isto é, pela estratégia lexical).
É importante ressaltar que, ao chegar a este último
estágio, só porque a criança passa a ser capaz de fazer uso da estratégia
lexical, não significa que ela abandone as estratégias anteriores. Em verdade,
as três estratégias de leitura ficam disponíveis o tempo todo à criança, sendo
que ela aprende a fazer uso da estratégia que se revelar mais eficaz para um ou
outro tipo de material de leitura e escrita.
De acordo com Share (1995), a rota fonológica que
predomina no segundo estágio, o alfabético, é essencial para o desenvolvimento
da leitura. E, para que a rota fonológica seja competente, é essencial a
consciência de que a fala tem uma estrutura fonêmica subjacente. Isto porque,
quando a criança consegue perceber que a fala é segmentável em sons e que esses
sons são mapeados pela escrita, ela passa a usar um sistema gerativo que
converte a ortografia em fonologia, o que possibilita a leitura de qualquer
palavra nova, desde que envolva correspondências grafofonêmicas regulares. Esta
geratividade, característica das ortografias alfabéticas, permite a
auto-aprendizagem pelo leitor pois, ao se deparar com uma palavra nova, ele a
lerá por decodificação fonológica. Tal processo aos poucos contribuirá para
criar uma representação ortográfica daquela palavra. É a constituição dessa
representação ortográfica que permite com que tal palavra, daí por diante,
possa ser lida pela rota lexical. Logo, essencialmente, é o próprio processo
fonológico, que depende da consciência fonológica, que permitirá ulteriormente
a leitura e a escrita lexicais competentes (Share, 1995). Assim, como a
consciência fonológica e a decodificação são pré-requisitos para o domínio da
linguagem escrita, pessoas com dificuldades para desenvolver a consciência
fonológica (como ocorre com grande parte dos disléxicos) apresentam dificuldades
na alfabetização.
Diversas pesquisas têm buscado desenvolver procedimentos para
avaliação de leitura, escrita e habilidade relacionadas, bem como de
intervenção em dificuldades com a linguagem escrita. Nosso grupo de pesquisa
tem disponibilizado instrumentos de avaliação e de intervenção. Os
procedimentos de intervenção encontram-se disponibilizados em Capovilla e
Capovilla (2005, 2004, 2003).
Quanto aos procedimentos de avaliação, estudos têm mostrado
que as habilidades de consciência fonológica, especialmente manipulação e
transposição silábicas e fonêmicas, e a consciência sintática, que avalia a
capacidade da criança de refletir sobre a sintaxe da língua, são as mais
fortemente correlacionadas com a habilidade de leitura (Demont, 1997). Muter,
Snowling e Taylor (1994) apontaram as tarefas de consciência fonológica,
especialmente segmentação fonêmica e rima, e tarefas de conhecimento de letras.
Outros estudos mostraram a importância de se avaliar também memória fonológica
de curto-prazo (Hulme & Roodenrys, 1995), discriminação auditiva
(Masterson, Hazan & Wijayatilake, 1995), nomeação de figuras (Locke, 1980)
e repetição de palavras e pseudopalavras (Vance, 2004). Dentre os instrumentos
disponíveis no Brasil, podemos citar:
Ø Teste de Competência de Leitura de Palavras
(Capovilla, Viggiano, Capovilla, Raphael, Mauricio, & Bidá, 2004);
Ø Teste de Competência de Leitura de Sentenças
(Capovilla, Viggiano, Capovilla, Raphael, Bidá,
Neves, & Mauricio, 2005).
Ø Prova de
Consciência Fonológica por Produção Oral
(Capovilla & Capovilla, 1998, 2000): avalia a habilidade das crianças de
manipular sons da fala, expressando oralmente o resultado dessa manipulação.
Ø
Prova de
Consciência Sintática (Capovilla, Soares & Capovilla, 2004): avalia as
habilidades de julgamento gramatical, correção gramatical, correção gramatical
de frases agramaticais e assemânticas e categorização de palavras.
Ø
Teste de
Vocabulário por Imagens Peabody (Capovilla & Capovilla, 1997):
avalia as habilidades de compreensão de vocabulário, de crianças entre 2a6m até
18 anos de idade.
Ø Lista de Avaliação de Vocabulário Expressivo (Capovilla
& Capovilla, 1997): avalia vocabulário expressivo, i.e., quais palavras uma
criança fala, destinada a crianças a partir de 2 anos de idade, com o objetivo
de avaliar atraso de linguagem.
Ao usar procedimentos de avaliação e de intervenção cientificamente validados, os
profissionais poderão acompanhar o desenvolvimento da leitura e da escrita em crianças,
bem como detectar e intervir de forma mais eficaz problemas neste desenvolvimento.
Referências
e sugestões de leitura
Hulme, C. & Snowling, M. (1997). Dyslexia:
Biology, Cognition and Intervention. London, UK: Whurr Publishers Ltd.
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Fielding-Barnsley, R. (1989). Phonemic awareness and letter knowledge in the
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desenvolvimento da consciência fonológica durante a alfabetização. Temas sobre Desenvolvimento, 6(36),
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A. G. S., & Capovilla, F .C. (1998). Prova
de Consciência Fonológica: desenvolvimento de dez habilidades da pré-escola à
segunda série. Temas sobre Desenvolvimento,
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leitura e escrita. 2a. ed. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
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significado: Versão original validada e normatizada do Teste de Competência de
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Versão 1.1 do Teste de Vocabulário Receptivo de Sinais da Libras, validada e
normatizada para aplicação com sinalização ao vivo. Em F. Capovilla & W.
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Demont, E. (1997). Consciência fonológica,
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Vance, M. (2004). Avaliação da habilidade de processamento da fala nas crianças. In M.
Snowling & J. Stackhouse (Eds.), Dislexia, fala e linguagem (pp.57-73). Porto Alegre,
RS: Artes Médicas.