Fabrícia Moraes
Ao refletirmos sobre uma característica definidora do brinquedo nos vem à mente uma atividade que proporciona prazer à criança. No entanto este caráter distintivo não traduz realmente tudo que o brinquedo representa. A ação do brincar constitui uma forma de atividade intrínseca ao ser humano. Entre os primitivos, por exemplo, as atividades de pesca, dança, caça, lutas eram práticas tidas como de sobrevivência, ultrapassando muitas vezes o caráter restrito de divertimento e prazer natural.
De acordo com Almeida (1998, p. 19), as crianças, nos jogos, participavam de empreendimentos técnicos e mágicos. O corpo e o meio, a infância e a cultura adulta faziam parte de um só mundo. Esse mundo podia ser pequeno, mas era eminentemente lúdico, uma vez que os jogos caracterizavam a própria cultura, que era a educação, e esta representava a sobrevivência.
Platão (apud Almeida, 1998, p. 20) um dos maiores pensadores da Grécia Antiga, afirmava que os primeiros anos de vida da criança deveriam ser ocupados com jogos educativos, praticados em comum entre meninos e meninas, sob a supervisão de um adulto em jardins de crianças.
O esporte, que era tão difundido na época, para Platão (apud Almeida, 1998, p.20) tinha um valor educativo, moral, colocado em pé de igualdade com a cultura intelectual e em estreita colaboração com ela na formação do caráter e da personalidade. Por este motivo, investia contra o espírito competitivo dos jogos que, muitas vezes, usados de forma institucional pelo estado, causavam danos à formação das crianças e dos jovens.
Entre os egípcios, romanos, maias, os jogos serviam de meio para a geração mais jovem aprender com os mais velhos valores e conhecimentos, bem como normas dos padrões de vida social.
Com a ascensão do cristianismo, os jogos foram perdendo seu valor, porque eram considerados profanos e imorais e sem nenhuma significação. A partir do século XVI, os humanistas começaram a perceber o valor educativo dos jogos, e os colégios jesuítas foram os primeiros a recolocá-los em pratica. Impuseram, pouco a pouco, às pessoas de bem e aos amantes da ordem uma opinião menos radical com relação aos jogos.
Um comentário muito pertinente de Philippe Áries (apud Almeida, 1998, p. 21) afirma o seguinte:
Os padres compreenderam desde o início que não era possível nem desejável suprimi-los ou mesmo fazê-los depender de permissões precárias e vergonhosas. Ao contrário, propuseram-se a assimilá-los e a introduzi-los oficialmente em seus programas e regulamentos e controlá-los. Assim, disciplinados os jogos, reconhecidos como bons, foram admitidos, recomendados e considerados a partir de então como meios de educação tão estimável quanto os estudos.
A partir de então, a educação adotou os jogos nas suas práticas pedagógicas. Os jesuítas editaram em latim tratados de ginástica que forneciam regras dos jogos recomendados e passaram a aplicar nos colégios dança, a comédia, os jogos de azar, transformados em práticas educativas para aprendizagem da gramática e da ortografia.
A educação lúdica esteve presente em todas as épocas, povos, contextos de inúmeros pesquisadores, formando, hoje, uma vasta rede de conhecimentos não só no campo da educação, da psicologia, fisiologia, como nas demais áreas do conhecimento. Para Almeida (1998, p. 31-32):
A educação lúdica integra uma teoria profunda e uma prática atuante. Seus objetivos, além de explicar as relações múltiplas do ser humano em seu contexto histórico, social, cultural, psicológico, enfatizam a libertação das relações pessoais passivas, técnicas para as relações reflexivas, criadoras, inteligentes, socializadoras, fazendo do ato de educar um compromisso consciente intencional, de esforço, sem perder o caráter de prazer, de satisfação individual e modificador da sociedade.
A atividade lúdica representa a essência do ser humano, isto é, manifestações sérias que lhes são inerentes desde a infância à velhice, que agem e se manifestam, durante toda a vida, alterando, modificando e provocando novas adaptações do comportamento.
A brincadeira não é apenas uma forma de desafogo ou entretenimento para gastar a energia das crianças, mas um meio de enriquecer o desenvolvimento intelectual. E, à medida que a criança se desenvolve, tornam-se mais significativo, pois, a partir da livre manipulação de materiais variados, ela passa a reconstruir objetos, reinventar as coisas, o que já existe uma “adaptação” mais completa.
Jean Piaget (1978, p. 115) diz que se o ato de inteligência culmina num equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, enquanto que a imitação prolonga a ultima por si mesma, podemos falar, inversamente, que o jogo é essencialmente assimilação, ou assimilação predominando sobre a acomodação. Para, ele o jogo é simples assimilação funcional ou reprodutora. O jogo da imaginação constitui uma transposição simbólica que sujeita as coisas às atividades do indivìduo, sem regras nem limitações, é assimilação quase pura, quer dizer pensamento orientado pela preocupação dominante da satisfação individual.
Para complementar, ele explica que com a socialização da criança, o jogo adota regras ou adapta cada vez mais a imaginação simbólica aos dados da realidade, sob a forma de construções ainda espontâneas mais imitando o real.
Piaget (1978, p. 116) faz a seguinte reflexão:
[...] a evolução do jogo, que interfere incessantemente com a da imitação e da representação em geral, permite dissociar os diversos tipos de símbolos, desde aquele que, pelo seu mecanismo de simples assimilação egocêntrica, se distancia ao máximo do “signo”, até aquele que, pela sua natureza de representação simultaneamente acomodadora
É evidente que a atividade lúdica é o berço obrigatório das atividades intelectuais e sociais superiores. A melhor forma de conduzir a criança à atividade, à auto-expressão e à socialização seria por meio dos jogos, que são fatores decisivos na educação destas.
Para Almeida (1998, p. 37) o brinquedo faz parte da vida da vida da criança, ele representa a relação pensamento-ação e, sob esse ponto, constitui provavelmente a matriz de toda a atividade lingüística, ao tornar possível o uso da fala, do pensamento e da imaginação.
É necessário compreender que o conteúdo do brinquedo não determina a brincadeira da criança. Ao contrário: o ato de brincar (jogar, participar) é que revela o conteúdo do brinquedo.
Como diz Almeida (1998, p. 38): “O mundo do brinquedo é um mundo composto, que representa o apego, a imitação, a representação e não aparece simplesmente como uma exigência indevida, mas faz parte da vontade de crescer e se desenvolver.”.
A criança satisfaz certas necessidades no brinquedo. Na idade pré-escolar quando surgem os desejos que não podem ser imediatamente satisfeito ou esquecido, a criança envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo, de acordo com Vygotsky (1998, p.135), é o que chamamos de brinquedo.
Vygotsky (1998, p.135) afirma que: ”o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo ele mesmo uma grande fonte de desenvolvimento”.
Quando brinca a criança envolve-se numa situação imaginária criada por ela. Tais situações imaginárias sempre foram vista apenas como uma forma de brincadeira e não como uma característica definidora do brinquedo em geral. Segundo Vygotsky (1998, p. 123) a regra de que o brincar da criança é uma imaginação em ação deve ser invertida, podemos dizer que a imaginação, nos adolescentes e nas crianças em idade pré-escolar é o brinquedo sem ação.
Vários pesquisadores tratam da questão do significado do comportamento de uma criança em uma situação imaginária e concluíram que o brinquedo nesta situação é, de fato, um brinquedo baseado em regras, afirmando que não existe brinquedo sem regras. De acordo com Vygotsky:
A situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com regras formais estabelecidas a priori. A criança imagina-se como mãe e a boneca como criança e, dessa forma, devem obedecer às regras do comportamento maternal. (1998, p.124)
Quando uma criança cria uma situação imaginária, por exemplo, quando uma menina brinca com sua boneca e faz o papel de mãe, a criança tenta ser o que ela pensa que uma mãe deveria ser. Logo a menina é induzida a adquirir regras de comportamento.
A criança vivenciando uma situação imaginária enfatiza tudo aquilo que está ligado ao conceito que ela tem de mãe. Detalhes que passam despercebidos na vida real, no brinquedo, tornam-se uma regra de comportamento para a criança. Quando brinca a criança faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer.
A brincadeira é um fator muito importante para o desenvolvimento da criança. Várias transformações internas surgem em conseqüência do brinquedo. Uma criança ao brincar com sua boneca repete quase exatamente o que sua mãe faz com ela. O que ocorre é uma reprodução da situação real. Como assegura Vygotsky: “O brinquedo é muito mais a lembrança de alguma coisa que realmente aconteceu do que imaginação. É mais a memória em ação do que uma situação imaginária nova”. (1998, p.135)
É notório que, através da ação do brincar as maiores aquisições de uma criança são adquiridas, aquisições que no futuro se tornarão seu nível básico da ação real e moralidade.
À medida que a criança cresce e desenvolve-se, o jogo também vai mudando e evoluindo. Iremos agora acompanhar a natureza do jogo em cada fase de desenvolvimento do ser humano, nos níveis sensório-motor, simbólico, intuitivo, fase da inteligência operatória, concreta e abstrata através de uma linha evolutiva:
Fase sensório-motora
(maternal – de 1 a 2 anos, aproximadamente)
Nessa fase, a criança desenvolve seus sentidos, seus movimentos, seus músculos, sua percepção e seu cérebro. Olhando, pegando, ouvindo, apalpando, mexendo em tudo que encontra a seu redor, ela se diverte e conquista novas realidades. Em sua origem sensório – motora, o jogo é para ela pura assimilação do real ao “eu” e caracteriza as manifestações de seu desenvolvimento.
O bebê brinca com o corpo, executa movimentos como estender e recolher os braços, as pernas, os dedos, os músculos. As brincadeiras físicas satisfazem à criança porque consubstanciam as necessidades de seu crescimento e combinam as necessidades simples com atitudes naturais, anulando as combinações anormais dos músculos e realizando o aperfeiçoamento.
Fase simbólica
(jardim I – de 2 a 4 anos, aproximadamente)
Além dos movimentos físicos, a criança passa a exercitar intencionalmente movimentos motores mais específicos, utilizando para isso as mãos. Adora rasgar, pegar no lápis, mexer com as coisas, encaixar objetos nos lugares, montar e desmontar coisas, dando aos exercícios uma intenção inteligente e uma evolução natural de sua coordenação.
Essas manifestações são expressões de puro simbolismo, representado na mente. A criança brinca de casinha, motorista, cavalo-de-pau, dança, etc. como forma de “faz-de-conta”, imita tudo e todos. O jogo simbólico se explica pela assimilação do “eu” – ele é o pensamento de forma mais pura. Por isso a criança gosta de participar de todos os tipos de brincadeiras que evidenciam movimentos corporais, imitações e pequenas descobertas.
Fase intuitiva
(jardim II, pré-escola – de 4 a 6/7 anos, aproximadamente)
É a fase em que, sob a forma de exercício psicomotores e simbolismo, a criança transforma o real em função das múltiplas necessidades do “eu”. Os jogos passam a ter uma seriedade absoluta na vida das crianças e um sentido funcional e utilitário.
Os jogos que as crianças mais gostam são aqueles em que seu corpo está em movimento; elas ficam contentes quando podem movimentar-se, e é essa movimentação do corpo que torna seu crescimento físico natural e saudável.
Fase da operação concreta
(escola de 1° grau – de 6/8 a 11/12 anos, aproximadamente)
É a fase escolar em que a criança incorporará os conhecimentos sistematizados, tomará consciência de seus atos e despertará para um mundo em cooperação com seus semelhantes. É interessante considerar os pontos mais significativos de seu desenvolvimento.
Os exercícios físicos transformam-se, aos poucos, em práticas esportivas, pois passam a compreender finalidades, por meio de esforços conjuntos. Nessa idade a criança começa a pensar inteligentemente, com certa lógica. Começa a entender o mundo mais objetivamente e a ter consciência de suas ações, discernindo o certo do errado. Os jogos, nessa fase, transformam-se em construções adaptadas, exigindo sempre mais o trabalho efetivo e participativo no processo de aprendizagem, que começa a sistematizar o conhecimento existente.
Fase da operação abstrata
(11, 12 anos para a frente – adolescência)
A partir dos 11, 12 anos os jogos caracterizam-se como atividades adaptativas ao equilíbrio físico, pois o aperfeiçoamento dos músculos tão comuns e apreciados (ginástica, jogos olímpicos, práticas esportivas) e acarretam princípios de descobertas, de julgamento, de criatividade, caracterizando o pensamento formal e possibilitando o surgimento de relações sociais amadurecidas, bem como o surgimento de lideranças participativas.
Por fim, depois de todas essas considerações, percebemos que a atividade lúdica além de contribuir e influenciar na formação da criança e do adolescente, possibilita um crescimento sadio, um enriquecimento permanente, integra-se ao mais alto espírito de uma prática democrática enquanto investe em uma produção séria do conhecimento. Sua prática exige a participação franca, criativa, livre, crítica, promovendo a interação social e tendo em vista o forte compromisso de transformação e modificação do meio.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Paulo Nunes de. Educação Lúdica: Técnicas e Jogos Pedagógicos. 9ªed. São Paulo-SP: Edções Loyola, 1998
ALMEIDA, Paulo Nunes de. Educação Lúdica: Técnicas e Jogos Pedagógicos. 9ªed. São Paulo-SP: Edções Loyola, 1998
PIAGET, Jean. A formação do Símbolo na Criança: imitações, jogo e sonho, imagem e representação. 3ª ed., Rio de Janeiro- RJ: Zahar Editores,1978.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A Formação Social da Mente: O Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores. 6ª ed., São Paulo-SP: Martins Fontes, 1998.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: ArtMed, 2003.
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